Número cento e três. Rua Direita.
Eu tinha a sensação de quem se esfola
E inopinadamente o corpo atola
Numa poça de carne liquefeita!
Número cento e três. Rua Direita.
Eu tinha a sensação de quem se esfola
E inopinadamente o corpo atola
Numa poça de carne liquefeita!
— “Que esta alucinação tátil não cresça!”
— Dizia; e erguia, oh! céu, alto, por ver-vos,
Com a rebeldia acérrima dos nervos
Minha atormentadíssima cabeça.
É a potencialidade que me eleva
Ao grande Deus, e absorve em cada viagem
Minh’alma — este sombrio personagem
Do drama panteístico da treva!
Depois de dezesseis anos de estudo
Generalizações grandes e ousadas
Traziam minhas forças concentradas
Na compreensão monística de tudo.
Mas a aguadilha pútrida o ombro inerme
Me aspergia, banhava minhas tíbias
E a ela se aliava o ardor das sirtes líbias,
Cortando o melanismo da epiderme.
Arimânico gênio destrutivo
Desconjuntava minha autônoma alma
Esbandalhando essa unidade calma,
Que forma a coerência do ser vivo.
E eu saí a tremer com a língua grossa
E a volição no cúmulo do exício,
Como quem é levado para o hospício
Aos trambolhões, num canto de carroça!
Perante o inexorável céu aceso
Agregações abióticas espúrias,
Como uma cara, recebendo injúrias,
Recebiam os cuspos do desprezo.
A essa hora, nas telúrias reservas,
O reino mineral americano
Dormia, sob os pés do orgulho humano,
E a cimalha minúscula das ervas.
E não haver quem, íntegra, lhe entregue,
Com os ligamentos glóticos precisos,
A liberdade de vingar em risos
A angústia milenária que o persegue!
Bolia nos obscuros labirintos
Da fértil terra gorda, úmida e fresca,
A ínfima fauna abscôndita e grotesca
Da família bastarda dos helmintos.
As vegetalidades subalternas
Que os serenos noturnos orvalhavam,
Pela alta frieza intrínseca, lembravam
Toalhas molhadas sobre as minhas pernas.
E no estrume fresquíssimo da gleba
Formigavam, com a símplice sarcode,
O vibrião, o ancilóstomo, o colpode
E outros irmãos legítimos da ameba!
E todas essas formas que Deus lança
No Cosmos, me pediam, com o ar horrível,
Um pedaço de língua disponível
Para a filogenética vingança!
A cidade exalava um podre báfio:
Os anúncios das casas de comércio,
Mais tristes que as elégias* de Propércio,
Pareciam talvez meu epitáfio.
O motor teleológico da Vida
Parara! Agora, em diástoles de guerra,
Vinha do coração quente da terra
Um rumor de matéria dissolvida.
A química feroz do cemitério
Transformava porções de átomos juntos
No óleo malsão que escorre dos defuntos,
Com a abundância de um geyser deletério.
Dedos denunciadores escreviam
Na lúgubre extensão da rua preta
Todo o destino negro do planeta,
Onde minhas moléculas sofriam.
Um necrófilo mau forçava as lousas
E eu — coetâneo do horrendo cataclismo —
Era puxado para aquele abismo
No redemoinho universal das cousas!
Augusto dos ANJOS (1884 - 1914) - Eu e Outras Poesias.
Augusto dos Anjos é um dos mais originais poetas brasileiros, e também um dos mais populares. Sua obra consiste, porém, em apenas um livro. Eu foi publicado ainda em vida do autor; outros poemas, publicados em periódicos ou inéditos, foram coligidos após sua morte e acrescentados ao volume organizado pelo autor, renomeado então Eu e Outras Poesias . Aclamada pelo público e pela crítica, sua obra foi repudiada por muitos em sua época, e ainda causa estranheza, pela mistura de vocabulário coloquial e científico, pelos temas exacerbadamente macabros e pessimistas, pelo exagero sistemáticos na linguagem e no tratamento dos temas. Não obstante as controvérsias que cercam sua obra, muitos de seus versos caíram no uso popular, tais como um urubu pousou em minha sorte , a mão que afaga é a mesma que apedreja e outros.
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